Apesar de ser um dos países que mais diagnosticam a doença, especialistas alertam para endemia oculta de hanseníase.
Janeiro é o mês de conscientização sobre a hanseníase e o Brasil ainda segue na segunda posição mundial em números absolutos de casos – fica atrás da Índia. Mas é o 1º em taxa de detecção, que é o percentual de casos novos a cada 100.000 habitantes. 90% dos casos das Américas estão no Brasil. Mesmo sendo um dos países que mais diagnosticam, há uma endemia oculta de hanseníase no Brasil. A Região Centro-Oeste é a que mais diagnostica casos novos. 22.773 novos casos foram notificados no país em 2023, segundo o último Boletim Epidemiológico da OMS, um aumento de 4% em comparação com 2022.
Segundo a Sociedade Brasileira de Hansenologia (SBH), o território ocupado pelos estados do Centro-Oeste, Nordeste e Norte do Brasil é a maior área geográfica, com aproximadamente metade da população do país, exposta a índices de “muito alta” ou “alta” endemia de hanseníase. Por outro lado, a região Sul, com menor índice de casos novos tem, paradoxalmente alto percentual de casos diagnosticados já com sequelas – “um indício de endemia oculta de hanseníase”, alerta o presidente da SBH, Marco Andrey Cipriani Frade, professor titular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP.
Mato Grosso (66,2 pacientes a cada 100 mil habitantes) é o estado com os maiores índices de detecção de novos casos. No topo do ranking de municípios brasileiros com mais casos está Várzea Grande-MT. A SBH ressalta que houve aumento significativo do percentual de casos novos já com sequelas irreversíveis no Brasil – 15% em 2022 em relação ao percentual de 2019 – um paradoxo frente a uma queda do número de casos novos com a pandemia de 29,5% em 2022.
“Verificamos ainda que nos estados endêmicos como Tocantins e Alagoas o aumento de casos novos com sequelas avançadas já no diagnóstico chegou a 72%. No entanto, em regiões ditas “em controle” como no Sudeste, estados de Minas Gerais e Espírito Santo, tiveram aumento de 24% e 138% respectivamente de casos novos com sequelas também avançadas. Isso se repete na região Sul, com percentual constante de 25% dos pacientes no estado do Rio Grande do Sul nesta condição desde 2019. Todos esses dados nos levam a ter certeza do quanto estamos chegando atrasados para o diagnóstico de uma doença que é tratável e tem cura diagnosticada precocemente. Os números sinalizam o quanto são necessárias ações de treinamento/capacitação para busca ativa de casos de hanseníase em suas mais variadas formas clínicas, principalmente aquelas mais sutis, principalmente as que acometem somente os nervos, sem lesões de pele ou com lesões que poucos profissionais conseguem detectar”, diz o presidente da SBH.
Em 1991, a OMS acordou em reunião com países que ainda tinham altas taxas de hanseníase a “eliminação da doença como problema de saúde pública” até o ano 2000. Um quarto de século depois, o Brasil ainda tem milhares de doentes sem diagnóstico e tratamento, situação que tem sido tema de artigos em publicações científicas e alertas da Sociedade Brasileira de Hansenologia(SBH) a autoridades brasileiras e estrangeiras.
Agosto de 2024 será o mais quente da história?Em 2015, estudo de hansenologistas de várias universidades e organizações mundiais apontou 4 milhões de doentes de hanseníase no mundo ainda sem diagnóstico. 400 mil estariam no Brasil, suspeitam hansenologistas ligados à SBH, já que o país historicamente responde por cerca de 10% de todos os casos de hanseníase do planeta – nos últimos anos, dos 200 mil casos diagnosticados anualmente no mundo, o Brasil tem respondido por mais de 20 mil.
Antes da pandemia de COVID, eram diagnosticados no Brasil cerca de 30 mil novos casos/ano e o país ainda não conseguiu voltar ao número de diagnósticos feitos anteriormente.
Área mais clara da pele em volta do tornozelo onde há diminuição de sensibilidade – o paciente pode se ferir e não sentir dor.
OBS: As cores são usadas pelo médico para indicar diferentes graus de perda de sensibilidade em uma mesma mancha provocada pela hanseníase. O médico testa a sensibilidade da pele com fios de nylon de diferentes espessuras e pesos. O fio mais leve é o verde, com 0,07 gramas e o mais pesado é rosa e tem 300 gramas. As áreas pintadas de verde têm menor perda de sensibilidade. A paciente da foto não tem perda grave apontada pela cor rosa.
DOENÇA NEURAL
A hanseníase é uma doença “neural”, o bacilo de Hansen afeta os nervos e age lentamente – pode levar de 5 a 10 anos até que a doença se instale e se torne visível. Podem surgir manchas esbranquiçadas ou avermelhadas na pele, com diminuição (podendo levar à perda total) de sensibilidade para a dor, toque, frio ou calor. O paciente perde gradativamente a força para segurar objetos e realizar atividades cotidianas simples como, por exemplo abotoar a roupa. Com a ação do bacilo, a pessoa pode sentir formigamentos e dores pelo corpo.
O nível diário de CO2 atmosférico superará 416 ppm no Natal?O exame clínico é suficiente para o diagnóstico. O médico avalia um conjunto de sinais e sintomas, podendo pedir exames complementares. Nem sempre os exames laboratoriais conseguem identificar o bacilo de Hansen no paciente, mas com a avaliação médica durante a consulta o paciente pode ser encaminhado ao tratamento.
O tratamento é gratuito, feito com um coquetel de antibióticos, a Poliquimioterapia. A medicação é doada ao país pela OMS e o paciente em tratamento deixa de transmitir o bacilo, daí que é injustificado todo tipo de preconceito, demissões, crianças tiradas da escola, afastamento de pacientes ou seus familiares do convívio social.
Pesquisas ajudam a combater a hanseníase
Um questionário simples com 14 perguntas, desenvolvido na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP, está revolucionando o rastreio de casos suspeitos de hanseníase no país. O QSH-Questionário de Suspeição de Hanseníase foi premiado pelo Ministério da Saúde e adotado pelo SUS, está acessível na internet (https://crndsh.com.br/qsh) e qualquer pessoa pode responder e apresentar ao seu médico.
Para agilizar a análise de milhares de questionários, foi desenvolvida uma ferramenta de inteligência artificial, na mesma universidade, conhecida como MaLeSQs, capaz de levantar casos suspeitos analisando padrões de respostas do QSH. Até o desenvolvimento do MaLeSQs, a análise dos questionários era manual. O município paulista de Tambaú é o primeiro do país a avaliar 100% da população adulta para a doença (excluiu apenas crianças menores de 5 anos) e a ferramenta apontou 300 suspeitos dentre os 15.571 questionários aplicados. Todos foram avaliados e 30 pacientes foram confirmados.
MITOS E FATOS
A hanseníase não é uma doença característica de populações e comunidades vulneráveis. O mapeamento da ocorrência de casos aponta diagnósticos entre populações de todas as classes sociais. A ocorrência maior em populações mais vulneráveis tem as mesmas características de outras doenças: falta de informação e condições sociais de famílias vivendo em moradias pequenas com alta densidade demográfica intradomiciliar, dificuldade de acesso à saúde com profissionais habilitados/capacitados em hanseníase.
A hanseníase não pode ser erradicada, assim como aconteceu com a varíola, por exemplo. Mas pode ser controlada. A quebra da cadeia de transmissão do bacilo se dá com o aumento de diagnósticos e tratamento.
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